Em meio à intrincada engrenagem institucional brasileira, destaca-se uma inquietante dicotomia:
o abismo que separa o discurso público de austeridade das efetivas práticas implementadas no âmago do Parlamento.
O estágio atual do chamado “parlamentarismo real” consubstancia-se no esgarçamento ético das bases republicanas, cenário em que a retórica do rigor fiscal e do compromisso com o interesse público atua, na realidade, como habilidosa cortina de fumaça para a perpetuação de privilégios e o fortalecimento de estruturas de poder.
À luz do pensamento de Hely Lopes Meirelles, o princípio da moralidade administrativa “impõe limites éticos aos poderes públicos, exigindo que a atuação do gestor não se paute apenas na legalidade estrita, mas atenda aos valores mais elevados de justiça e honestidade” (Meirelles, H. L., Direito Administrativo Brasileiro). Contudo, o que se observa é a reincidência dos vícios do patrimonialismo, tão bem diagnosticado por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil: “A confusão entre o público e o privado é a matriz do desvirtuamento ético na condução do Estado”, propiciando o uso do cargo público como instrumento de benefício pessoal, em detrimento da isonomia e da impessoalidade.
No viés contábil, a Lei de Responsabilidade Fiscal, conforme leciona Mário Jorge de Medeiros Costa (Comentários à Lei de Responsabilidade Fiscal), “exige a transparência e o planejamento das contas públicas, frisando que a gestão fiscal responsável não pode ser dissociada da conduta probamente ética do administrador”. A contabilidade pública, assim, transcende o mero registro de fatos e revelações patrimoniais, assumindo o papel de instrumento de accountability, alertando administradores, órgãos de controle e sociedade quanto à aderência da ação governamental aos princípios constitucionais.
Em gestão pública, Peter Drucker já advertia: “Não há nada tão inútil quanto fazer com grande eficiência aquilo que não deveria ser feito.”
O Parlamento, ao viabilizar mecanismos de autoproteção e ampliação de benesses próprios enquanto impõe sacrifícios ao restante da sociedade, ilustra na prática o que Drucker denominou de ineficiência ética, afrontando o absolutamente necessário alinhamento entre discurso organizacional e comportamento institucional.
Assim, o projeto recém proposto pelo presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta — que felizmente escancarou as contradições intrínsecas desse modelo — aprofunda a crise de confiança.
Ao propor a revalidação e a ampliação de prerrogativas remuneratórias ao Legislativo, mesmo sob o argumento de austeridade para o restante do aparato estatal, evidencia-se o afastamento dos valores mais caros à República: transparência, responsabilidade, equidade e justiça social.
Como bem observa Américo Bedê Freire Júnior (Ética no Setor Público), “quando a retórica serve apenas à autopreservação, e não ao interesse coletivo, ela deixa de ser arcabouço civilizatório para tornar-se artifício de poder”.
É, pois, nesse cenário de profunda dissonância entre o discurso e a práxis que se desenha o verdadeiro desmonte ético do Estado brasileiro — não apenas pela incoerência discursiva, mas, sobretudo, pela apropriação instrumental da máquina pública em benefício próprio, à revelia do equilíbrio fiscal e do compromisso social que deveriam nortear toda e qualquer República digna de seu nome.
I. Da Pregação de Austeridade ao Paradoxo da Autoproteção
A tradição político-administrativa brasileira nunca privou o Parlamento de retóricas ostensivas acerca da responsabilidade fiscal.
Os “paladinos” da moralidade pública alternam-se em discursos inflamados, defendendo corte de gastos, eficiência administrativa e suposta exemplaridade ética. Todavia, a retórica revela-se ficção diante da efetiva conduta — sobretudo quando o interesse em foco é o próprio ordenado parlamentar.
O projeto capitaneado por Hugo Motta, que extingue a histórica proibição de acúmulo entre aposentadoria parlamentar e salário de cargo eletivo, é o retrato mais eloquente da inversão de prioridades. Enquanto à sociedade se impõe sacrifícios sob o manto do ajuste fiscal, o Parlamento se arvora o direito de auto premiar-se com privilégios onerosos e inconstitucionais.
De forma célere e pouco transparente, avança também a proposta de gratificação natalina a ex-parlamentares, replicando, sob a alegação de igualdade, um benefício que onerará ainda mais o combalido regime previdenciário do Legislativo — tudo sem qualquer estimativa concreta de impacto orçamentário.
Nesse cenário, a invocação dos princípios de isonomia e legalidade para sustentar tais benesses mostra-se mero exercício dialético para legitimar desigualdades e perpetuar distorções patrimonialistas, contrariando a vocação republicana do Legislativo.
II. Da Autoridade do Parlamento à Usurpação do Debate Tributário
Assiste-se a uma preocupante mutação do Parlamento, que deixa de ser espaço de representação popular para tornar-se guilda corporativa, capturada em grande medida por interesses de casta. A urgência conferida à tramitação de projetos que ampliam privilégios próprios, em franco contraste com a permanente pregação de cortes e contenção de gastos dirigida ao Executivo, desvela um parlamentarismo invertido: o Legislativo não apenas fiscaliza, mas sequestra a agenda macroeconômica e subjuga o debate democrático.
III. Exemplos Recentes: Medidas Econômicas e ônus Sobre a Sociedade
Jamais se viu, na história recente, tamanha seletividade quando o tema é austeridade.
Sob o argumento da necessidade de recompor receitas, medidas como o recente aumento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) foram rapidamente editadas:
• Extinção da isenção de IR para LCIs e LCAs, agora tributados em 5%.
• Aumento da CSLL para fintechs: de 9% para 15%.
• Medida Provisória 1.262/2024: criação de alíquota mínima de 15% sobre lucro de multinacionais, alinhando-se à política da OCDE e promovendo a arrecadação adicional de R$ 10 bilhões a partir de 2025, valor que pode dobrar nos anos seguintes.
Todas essas medidas são apresentadas sob a égide da responsabilidade fiscal, quando, em paralelo, se orquestram manobras para aumentar o conforto e o privilégio dos próprios agentes parlamentares, em detrimento dos verdadeiros geradores de riqueza, os empreendedores brasileiros e, dos autênticos pagadores de impostos: o povo brasileiro.
IV. A Seletividade da Austeridade e o Paradoxo Republicano
Enquanto o Parlamento impõe pesadas cargas ao conjunto da sociedade — sobretudo aos mais vulneráveis e ao setor produtivo —, blinda-se e amplia suas vantagens sob o véu da legalidade formal, corrompendo o ideal republicano de impessoalidade, eficiência e moralidade administrativa.
Assim configura-se aquilo que denomino de “austeridade seletiva”: norma para muitos, exceção para poucos.
Como salienta Américo Bedê Freire Júnior, “quando a retórica serve apenas à autopreservação, e não ao interesse coletivo, ela deixa de ser arcabouço civilizatório para tornar-se artifício de poder”.
Estamos, pois, diante de uma deformidade institucional profundamente corrosiva à confiança nas próprias bases do Estado.
V. Considerações Finais
Como profissional que há mais de meio século atua na ciência contábil, tributária, jurídica e na formação de lideranças administrativas, assisto — não sem perplexidade — à consolidação do Estado patrimonialista, no qual as prerrogativas legais são manipuladas para distorcer direitos fundamentais e transferir o ônus fiscal à sociedade já exaurida.
O título desta matéria, “Entre o Discurso e a Prática: O Desmonte Ético do Parlamentarismo Real”, poder-se-ia, sem qualquer esforço hermenêutico, estender com igual severidade crítica aos demais Poderes da República — Executivo e Judiciário —, cujas práticas reiteradas de autopreservação e ampliação de privilégios vêm, de longa data, corroendo os alicerces da justiça fiscal e do compromisso social que, por princípio, deveriam nortear o Estado brasileiro.
A história recente atesta que reformas autênticas somente se legitimam quando ancoradas pelo exemplo e pela isonomia, jamais pela predominância do privilégio e de simulacros de austeridade.
Sem a refundação ética dos papéis estatais, permaneceremos reféns do paradoxo democrático
Assim segue o Brasil, onde o discurso da austeridade serve de biombo para a perpetuação de privilégios, à revelia da justiça fiscal e do compromisso social que deveria nortear o Estado Republicano.
Roberto Folgueral
Contador, Perito Judicial e Professor Universitário
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